Era 19 de fevereiro, um dia após a denúncia do ex-presidente Jair Bolsonaro ao STF por tentativa de golpe de Estado, quando o plenário da Câmara virou palco de uma rinha ridícula, com “guerra” de cartazes e palavras de ordem e deputados tentando se impor no grito. A base governista entoava brados de “Sem anistia”, enquanto bolsonaristas respondiam com “Lula ladrão, seu lugar é na prisão”. A terceira-secretária, Delegada Katarina (PSD-SE), que comandava a Mesa, suspendeu a sessão. Avisado do caos, o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) deixou uma reunião e retomou a sessão. “Se Vossas Excelências estão confundindo este presidente, uma pessoa paciente, serena, com um presidente frouxo, vocês não me conhecem. Aqui não é o jardim de infância, nem muito menos um lugar para espetacularização. Eu não aceitarei esse tipo de comportamento”, disse.
A confirmação do que dissera em alto e bom som veio rapidamente. Uma semana depois, o “Diário Oficial” da Câmara trazia um Ato da Mesa no qual Motta estabelecia a proibição do porte de “cartazes, banners, panfletos e afins”, tanto no plenário quanto nas comissões da Casa. Também deixava claro que “as manifestações parlamentares em sessões e reuniões da Câmara dos Deputados devem se limitar à utilização da palavra”. De quebra, no mesmo dia, baixou outra norma que reafirma resoluções de 1980 e 2020 que obrigam parlamentares a usarem “traje passeio completo (no caso de homens: paletó, camisa, sapato e gravata), respeitados aspectos sociais, culturais e econômicos”.

A tentativa do novo presidente é criar alguma disciplina em um Parlamento cada vez mais contaminado por cenas de “deputados teatrais”, como definia Arthur Lira (PP-AL), antecessor de Motta. A espetacularização já existiu em outros momentos, como no impeachment de Dilma Rousseff, quando o plenário foi tomado por cartazes de “Tchau, querida”, mas cresceu muito a partir de 2018, com a chegada de uma legião de jovens deputados de direita, a maioria com eleitorado construído na internet. Um episódio já clássico é o de Nikolas Ferreira (PL-MG), que usou uma peruca loura na tribuna para ironizar transexuais, dizendo que tinha virado “a Nikole”. Gestos como esse mostram que o plenário tem deixado de ser palco para debate de ideias e se tornado apenas um cenário para produzir material para redes sociais.
Enquanto tenta debelar o “espírito de quinta série” que tomou conta de parte da Câmara, Motta avança em outras frentes com o objetivo de dar mais “institucionalidade” à Casa. As reuniões do Colégio de Líderes, decisivas para o andamento da pauta, passaram a ser realizadas no gabinete da presidência — antes, os deputados se encontravam na residência oficial de Lira. Outra mudança envolve a questão das pautas. Com o antecessor, os projetos a ser votados eram conhecidos pelos deputados até minutos antes da sessão. Agora, as pautas da semana seguinte são divulgadas na sexta-feira anterior. Tais medidas garantem os direitos da minoria parlamentar, já que a oposição tem tempo para se articular, obstruir discussões ou apresentar emendas. “Essa questão da previsibilidade é muito importante. Ele tinha defendido essa bandeira na campanha e está fazendo”, elogiou o deputado Ricardo Salles (Novo-SP).

O tempo exíguo para os deputados se prepararem era uma carta na manga de Lira para controlar o andamento da Câmara, mas não era a única. Outro trunfo foi a expansão das votações a distância, com os deputados podendo se manifestar sem estar no plenário. A participação remota foi adotada na pandemia — com necessidade indiscutível, diga-se —, mas mantida como estratégia política. Foi assim que Lira conseguiu quórum em votações importantes, garantindo a possibilidade de parlamentares votarem direto dos celulares, mesmo se não estivessem em Brasília. Agora, isso vai dar um passo atrás. Para tentar reduzir os plenários vazios, Motta determinou que os deputados serão obrigados a ir às sessões de quarta-feira, das 16 às 20 horas, período destinado à discussão das pautas mais controversas. A votação remota segue permitida nos demais dias da semana.

Também há outros ventos soprando no campo político. Apesar do pouco tempo, já é visível a mudança no convívio entre os chefes das duas Casas Legislativas do Congresso. Um portão que liga as residências oficiais de Motta e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), presidente do Senado, deve ser reaberto, permitindo que eles reúnam longe dos olhares da imprensa. Nas gestões anteriores, o portão não era usado (ou raramente era usado) porque havia uma relação estremecida entre Lira e o ex-chefe do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A dupla Motta e Alcolumbre já articulou em conjunto para destravar o imbróglio das emendas parlamentares, que estavam bloqueadas pelo ministro Flávio Dino, do STF. A iniciativa tirou rapidamente da frente, ao menos por ora, um problema que poderia complicar a relação do Congresso com o Supremo e o governo Lula e atrapalhar a votação de projetos importantes, como ocorreu no final do ano passado.

Os primeiros enfrentamentos de Motta são parte dos desafios que o cargo irá lhe impor. Na volta após o Carnaval, o ambiente político interno, por exemplo, estará conflagrado pelas disputas entre os maiores partidos pelas comissões. A principal delas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), é alvo de disputa entre União Brasil e MDB. O PL e o PT, as duas maiores legendas, também brigam por espaços em Educação e Saúde. “Se o PL e o PT se acertarem, o resto se acomoda, como foi na eleição do Motta”, resume Jilmar Tatto (PT-SP), relembrando que Motta chegou ao cargo com apoio de quase todos os partidos — as exceções foram Novo e PSOL.

O uso das redes sociais por Motta também tem chamado atenção. Ele busca capitalizar seu cargo por meio de uma comunicação direta, diferentemente de seu antecessor, que era presença rara nos espaços de interação da internet. “Isso o fortalece como liderança no Congresso, visto que ele tem buscado popularizar o discurso de centro, e também eleva a autonomia dele no cenário nacional”, analisa Murilo Medeiros, professor de ciência política na UnB.

Herdeiro de uma família de políticos tradicionais do interior da Paraíba, Motta transita entre falas simpáticas aos conservadores e acenos ao campo progressista e ao governo. A estratégia moderadora para contornar a polarização se tornará um desafio, pois ele será cada vez mais pressionado a pautar assuntos com impacto eleitoral, devido à proximidade de 2026. Quando o clima esquentar será possível ver o quanto a tentativa de Motta de colocar ordem na casa irá de fato funcionar.
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Fonte: Veja