Ao estrear em 3 de novembro de 2020, o Pix registrou 2 345 transações que somaram 210 000 reais. Quatro anos depois, a ferramenta de pagamentos instantâneos criada pelo Banco Central consolidou-se como um sucesso estrondoso, revolucionando a forma como os brasileiros realizam operações financeiras. No último 20 de dezembro, a modalidade bateu seu recorde diário de movimentação, com 163 bilhões de reais transferidos em 252 milhões de transações. Atualmente, o Pix responde por 44% dos pagamentos, à frente do dinheiro vivo e de cartões de débito, crédito e pré-pagos. No ano passado, 26 trilhões de reais passaram pela plataforma, cifra 51% maior que a de 2023. Sua praticidade, aliada à expansão das instituições digitais, facilitou o acesso a bancos de 71 milhões de pessoas. Com isso, conta hoje com 156 milhões de usuários. “O Pix talvez seja o sistema que mais gerou inclusão financeira na história”, disse Roberto Campos Neto em agosto, quando ainda presidia o BC. Foi sob seu comando que a novidade ganhou vida.
Tendo em conta essa dimensão que o Pix possui hoje na rotina dos brasileiros, qualquer medida que traga algum impacto para a ferramenta vai gerar preocupação na sociedade. O governo federal ignorou essa cautela óbvia no episódio em que a Receita Federal, de forma descuidada, anunciou que iria cumprir a Instrução Normativa 2219/24. Ela ampliava o leque de instituições obrigadas a reportar as transações financeiras de seus clientes, incluindo o Pix. Hoje restrita aos bancos tradicionais, a regra passaria a valer para bancos digitais, operadoras de maquininhas e carteiras digitais como o PayPal e o GooglePay. A instrução também elevava o piso das operações que deveriam ser informadas à Receita Federal, de 2 000 para 5 000 reais no caso de pessoas físicas, e de 6 000 para 15 000 reais para empresas.
Tecnicamente, era uma medida acertada. Ao ampliar a vigilância, inclusive sobre as movimentações via Pix, o Fisco pretendia combater velhas mazelas, a começar pela sonegação fiscal. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, o país deixa de arrecadar 470 bilhões de reais por ano com a evasão. Outro alvo era a informalidade, campo em que prospera o contrabando. Neste mês, os Estados Unidos incluíram a Rua 25 de Março, famoso centro de comércio popular de São Paulo, na lista dos maiores polos de falsificação de produtos do mundo.
A falta de clareza na comunicação do governo, contudo, deu margem a uma proliferação de notícias falsas, grande parte delas com a mentira de que o Pix seria taxado pelo Leão, seguidas por muitas críticas nas redes, o que resultou num estado de apreensão generalizado entre empreendedores e consumidores. A péssima repercussão levou muita gente a evitar a ferramenta. O volume movimentado recuou para 921 bilhões de reais no acumulado de 1º a 14 de janeiro, 18% menos que no mesmo período de dezembro. No centro do tiroteio, Fernando Haddad desdobrou-se tentando conter o estrago, num trabalho incansável de esclarecimento ao público. A respeito da queda da movimentação do Pix, o ministro da Fazenda tentou argumentar que isso era um fator sazonal — janeiro seria um mês mais fraco que o anterior, em que o Natal impulsiona as compras. Contudo, o montante também ficou abaixo do registrado nas primeiras quinzenas de novembro e de outubro, segundo o Banco Central. Mesmo quem continuou aceitando o Pix ficou apreensivo. É o caso de Edivan dos Santos, ambulante de 28 anos que tem uma barraca de brinquedos e acessórios perto do Mercado Municipal da Lapa, na Zona Oeste de São Paulo. Inclinado a acreditar na boataria, Santos manteve o Pix como opção para os clientes. “É horrível, mas, se eu não aceitar, não vendo”, diz.
O negócio custou caro ao governo. Adversários de Lula usaram e abusaram das redes sociais para distorcer as novas regras. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) acusou o presidente de “criminalizar os trabalhadores”. O deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) tornou-se o maior expoente da cruzada de críticos. Um vídeo postado em sua conta no Instagram, na quarta-feira 15, superou 270 milhões de visualizações em questão de horas. Na peça, o parlamentar reconhece que o Pix não seria tributado, mas sugere que as mudanças poderiam abrir caminho para tanto. “É bom lembrar que a comprinha da China não seria taxada e foi”, afirma Nikolas a certa altura, referindo-se à “taxa das blusinhas”, como ficou conhecido o fim da isenção das compras internacionais de até 50 dólares, que passaram a pagar uma alíquota de 20%. Outros alegaram que as regras revogadas violariam a privacidade — o que não é verdade. “É uma inversão do princípio constitucional da boa-fé”, disse o líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), a VEJA. “A Receita está se intrometendo no sigilo bancário das pessoas e violando um princípio constitucional.”
Esse tipo de discurso certamente continuará servindo de munição política, independentemente do recuo do governo no caso, feito de uma forma constrangedora. As mudanças no Pix tiveram vida curta e foram revogadas às pressas na quarta-feira 15, após a celeuma provocada pelo anúncio do Fisco e a ameaça de ações no Congresso barrarem o negócio, no caso de insistência. Em seu lugar, o governo enviará ao Congresso uma medida provisória que assegure o uso gratuito da ferramenta e o sigilo das transações. Não é a primeira vez que o governo Lula erra feio no anúncio de uma medida econômica importante. Outro exemplo recente foi o anúncio do pacote fiscal em novembro. Em vez de se restringir a afirmar seu compromisso com o corte de gastos, o governo misturou as medidas de ajuste com o anúncio da isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais mensais. “No campo da comunicação, o governo Lula perde de goleada”, diz o consultor político Gaudêncio Torquato.
No caso do Pix, a gritaria contra o governo ganhou tração também enorme devido à insatisfação generalizada com a carga tributária, que passou a sobrecarregar cada vez mais os brasileiros ao longo das últimas décadas (aumentou de 23% para 32% do PIB nos últimos trinta anos), sendo que esse dinheiro não retorna na forma de serviços públicos de um padrão aceitável. Grande parte acaba sendo capturada no meio do caminho por interesses nada republicanos. A possibilidade de o Leão começar a abocanhar as movimentações via Pix com uma maior fiscalização representou uma espécie de gota d’água na insatisfação crescente da população com a política tributária. “O objetivo da Receita não era taxar pequenos lojistas e quem vende pastel na rua”, afirma Mauro Silva, presidente da Unafisco, entidade que reúne auditores fiscais. “O alvo eram os grandes desvios.”
O problema é que poucos acreditam nessa história. Os governos petistas são conhecidos pelo desleixo com as contas públicas, cujos rombos são cobertos, sempre que possível, pela sanha de arrecadar cada vez mais — em especial neste terceiro mandato de Lula. Os sinais de deterioração fiscal são evidentes. A dívida pública subiu de 72% do produto interno bruto (PIB) no fim de 2022 para 78% em 2024. O Tesouro Nacional admite que ela alcançará 82% em 2027. O mercado também não crê que o governo cumprirá a meta de zerar o déficit primário e aposta em um buraco equivalente a 0,6% do PIB em 2025.
Para piorar, o déficit nominal, que inclui os juros pagos pela dívida, chegará a 8,6% do PIB neste ano, segundo um relatório publicado pelo banco BTG Pactual. Se confirmado, o Brasil registrará o segundo maior rombo entre os 22 países analisados, atrás apenas da Bolívia, com 9,7%. Do outro lado, a voracidade arrecadatória já levou o governo a retomar a cobrança de PIS/Cofins sobre os combustíveis, cujas alíquotas estavam zeradas desde a gestão de Jair Bolsonaro, e à taxação dos fundos no exterior. Essa reincidência dos governos petistas motivou que muitos contribuintes acreditassem na suspeita lançada pelas fake news de que o Pix seria tributado. “Até agora, o governo só priorizou a arrecadação”, afirma Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados. “É óbvio que muita gente ficou com receio de que ele queira mais.”
Reverter os estragos causados pela campanha contra a fiscalização do Pix exigirá muito mais do que uma mudança de discurso — missão a cargo do marqueteiro Sidônio Palmeira, recém-empossado na Secretaria de Comunicação Social. “Lula oscila entre defender a gastança e apoiar o ajuste fiscal”, diz o consultor Torquato. “Isso reforça sua imagem dúbia.” Engajar-se no controle das contas e na redução efetiva da carga de impostos seria a atitude mais inteligente, devidamente alinhada com o combate à sonegação e à informalidade. A Receita tem todas as razões éticas, morais e legais para aperfeiçoar seus mecanismos de fiscalização. Seria bom que isso ocorresse dentro de uma administração capaz de dar o exemplo aos andares de baixo, mostrando-se rigorosa com suas próprias contas. Infelizmente, esse Pix ainda não caiu no governo.
Fonte: Veja